sábado, 24 de novembro de 2007

MÁRIO LÚCIO SOUSA - “SÓ O TALENTO É CAPAZ DE ADMIRAR O TALENTO”

MÁRIO LÚCIO SOUSA - “SÓ O TALENTO É CAPAZ DE ADMIRAR O TALENTO”

"Daí que quando já não se o tem, despreza-se também o talento", assim é que é a frase completa pronunciada pelo músico Mário Lúcio, na nossa longa conversa tida nas vésperas do lançamento do seu terceiro CD a solo " Badyo". O multi-talento e multi-instrumentista aproveitou para apresentar a nova obra e falar das críticas que lhe foram dirigidas por alguns músicos a respeito do montante que envolveu a actuação da sua orquestra na noite de 5 de Julho de 2005

Expr.d.i. - Como surgiu o projecto da gravação deste teu novo álbum?

Mário Lúcio - O projecto foi concebido de há dois anos para cá. Eu tinha um caderno de músicas já prontas e podia fazer dois discos: " Badyo" ou outro disco. Em concertação com a produtora decidimos que devia ser " Badyo". E aí arrumei as músicas para o "Badyo", porque no " Badyo" está implícito o percurso da música de Cabo Verde: como é que veio a música que temos, de onde veio, para onde foi e, quando regressou, o que é que trouxe? Esse percurso é semelhante à rota da escravatura, porque a nossa música está muito ligada à rota da escravatura. São esses badios, portanto os primeiros negros, de que no disco eu trato de seguir as primeiras pisadas. É evidente que, quando eu comecei a sentir o disco, agradeci a todos os meus antecessores, músicos e compositores, porque foi preciso uma aprendizagem muito ampla do nosso próprio país para conseguir fazer um trabalho deste tipo. Posso dizer que desde os meus 10 anos que venho preparando, sem saber, este disco, aprendendo as várias técnicas de execução não só do canto, mas também dos instrumentos tradicionais, por exemplo, a Cimboa. Acho que é um CD que todos os cabo-verdianos deviam ter, sem pretensão nenhuma. Não só para ouvir, mas também como documento. O livrete que vem dentro, que tem 16 páginas, traz toda a informação sobre o que é a Cimboa, a origem dos instrumentos, a origem dos géneros musicais, dos ritmos musicais, a origem das nossas influências tanto afro ( Mandinga, Woolof, Bantu) como também de origem europeia. Eram-me desconhecidas e encetei uma pesquisa para chegar a estes resultados e quero partilhar esses resultados com todos. Portanto para que, quando nos perguntarem, saibamos dar uma resposta relativamente científica, porque são dados históricos que eu reproduzo no livrete.

Expr.d.i. - O simples inventário dos instrumentos utilizados aponta para o disco que vamos ter em Dezembro?
ML - Fiz uma viajem a vários países africanos para sentir a pulsação, para ter o contacto com os deuses da terra e tomei algumas decisões no continente africano, nomeadamente no Mali. Tomei a decisão de que iria utilizar três blocos de instrumentos. O primeiro bloco seria os chamados instrumentos domésticos, portanto instrumentos que estão ligados ao percurso do badio. Não só ao percurso do hoje chamado badio, mas do percurso dos primeiros negros apelidados aqui de vadios. Utilizei como instrumento de percussão neste disco a surradeira, selha de lavar roupa, enxada, balaio com milho, garrafas de vidro, tigelas, cabaças, frigideiras, etc. Enfim, vários instrumentos domésticos exactamente para substituir a percussão convencional. O músico Stéphane Perruchet percebeu a minha ideia e executou-a perfeitamente. Depois utilizei um outro tipo de instrumentos que são instrumentos chamados clássicos: guitarra, cavaquinho, piano e contrabaixo. Utilizei também o bandonéon argentino, o acordeão, a gaita, o ferrinho e o balafón, para além das cordas tradicionais. Decidi não utilizar instrumentos de cordas como o violino ou o violoncelo, mas substitui-los por Cimboa, uma nova que me foi oferecida pelo IIPC, porque a que eu tinha já estava toda partida.
" Utilizei a Cimboa na máxima dimensão possível"
" Utilizei a Cimboa na máxima dimensão possível". Não só como instrumento de arco, mas explorando todas as possibilidades dos harmónicos, dos agudos, da pressão das cordas e também utilizando-a como instrumento de percussão, para abrir a possibilidade da nova geração se interessar pelo instrumento. A Cimboa não é um instrumento limitado, como à primeira vista parece, mas é um instrumento com uma vasta gama de possibilidades. É um instrumento muito cavernoso, emite um som muito humano: tem pele, tem cabaça, tem cordas de crina de cavalo, tem acácia; então é muito parecido connosco. Uma decisão que tomei no continente africano foi não utilizar instrumentos de sopro. Por desafio eu quis substituir todos os instrumentos de sopro por conjunção de vozes e assobios para que a sonoridade geral fosse mais orgânica. Chamei vários músicos cabo-verdianos para participar e músicos estrangeiros que estão na ficha técnica.

Expr.d.i. - Vejo que grafas o título do teu novo CD " Badyo" com y. Há algum significado especial?
ML - Costumo sempre jogar na semiótica e quando é possível utilizar uma palavra, utilizo-a em todas as suas acepções possíveis. Então o badyo com y pode significar badyo yo, eu badio, utilizando a terminologia espanhola que tem também muita influência na nossa língua crioula. Aliás Cimboa é um dos termos que nós herdamos do espanhol antigo, azamboa. Mas também, se utilizares o y como dj pode-se ler badjo. Eu creio que as músicas de Cabo Verde são indissociáveis do corpo, do baile sobretudo. O batuque, a tabanka, o funaná, a coladeira, colá, colecho surgiram como manifestações corporais. Então para mim, badio, a sua música e o badjo são indissociáveis. Por isso o meu disco é muito rítmico e quente, exactamente porque a tradição e o percurso do badio leva a isso.

Expr.d.i. - Logo depois da Praia e Mindelo o teu disco será lançado em nada menos que 20 cidades alemães. Porquê essa preferência germánica?
ML - A Áustria e a Alemanha são países que sempre demonstraram grande interesse por uma certa música de Cabo Verde. Desde logo porque têm uma exigência de escuta muito alta e então quando querem apostam muito forte. Há uma identificação com a minha música e, do que eu tenho percebido, gostam de músicas com uma certa cadência e um certo swing, mas também com uma certa elaboração harmónica. Têm dificuldade em captar a repetitividade que não está na cultura deles. Essa digressão pela Alemanha já estava preparada desde o ano passado. Agora, estamos a aproveitar para fazer conjuntamente a promoção do disco.

Expr.d.i. - O CD foi gravado no Estúdio " Nas Nuvens". De que estúdio se trata?
ML - É um pequeno laboratório de trabalho que eu tenho em casa, porque eu ando a compor para cinema, para teatro, para a dança com o Raiz di Polon e isto exigia-me ter um espaço de trabalho.
" O maior legado do Simentera foi a onda de música acústica que hoje invade a produção da música cabo-verdiana" Substitui o gabinete de advocacia por um estúdio. Pus o nome "Nas Nuvens" porque fica ali no alto na minha casa e sempre reflecte nuvens na janela. Foi aqui que eu fiz toda a base da gravação, das guitarras às vozes, o piano, a percussão; tudo foi feito cá. Em Paris só gravei o balafon, o bandonéon e o contrabaixo.
Expr.d.i. - Foste fundador e líder do grupo Simentera que marcou a viragem da música cabo-verdiana para o acústico. Como surgiu o projecto, que marcos deixaram, e porque terminou?ML - A minha ideia inicial era criar um grupo coral, porque tenho uma paixão forte pelo canto. Fomos introduzindo instrumentos e aí surgiu o Simentera. O nosso propósito era trazer a música acústica, pois na altura os instrumentos eléctricos é que dominavam. Nós quisemos dar um sopro novo, em termos de concepções e arranjos. E conseguimos isso pelo mundo. Acho que o maior legado do Simentera foi a onda da música acústica que hoje em dia invade a produção da música cabo-verdiana. O Simentera parou. Na verdade, quando pedi para sair, era porque queria fazer outras coisas. Deixei o grupo, digamos, em pé e solicitei que continuassem sem mim. Mas aí, sobretudo a nível internacional, os promoters recusaram a continuar a promover o Simentera sem a minha presença. E o Simentera sem as tournées internacionais significaria uma queda muito forte; assim o grupo decidiu parar. Mas somos muito amigos uns dos outros, encontramo-nos com frequência e há uma enorme vontade de voltarmos a tocar juntos. Então, digamos que o meu sonho é, de aqui a não muito longe, solicitar a todos os membros do Simentera que voltemos. Até porque vamos regressar sem aquela carga que nós tínhamos de produção de referência. Agora vamos tocar por prazer, reunimo-nos de tempos em tempos, fazemos uma tournée e tocamos juntos até como forma de revivalismo. Essa vontade existe.

Expr.d.i. - Qual é o prazo de validade para um grupo musical, cinco, dez anos?
ML - Eu nestas coisas de tempo, talvez para o meu próprio consolo, costumo pensar que aqueles queainda cá estão é porque ainda não cumpriram o ofício da vida. Pode ser um castigo ou talvez um prémio.
" Ainda não cumpri o meu ofício"
Mas eu acho que aqueles que já partiram é porque se deu por cumprido aquilo que eles vieram cá fazer. Sinto uma certa pena, porque quer dizer que ainda não cumpri o meu ofício, mas também dá-me um certo conforto, porque ainda tenho que trabalhar e trabalhar muito para poder dizer ‘vim cá e já fiz a minha parte'. Com os grupos musicais é exactamente o mesmo: um grupo deve existir até sentir que cumpriu o seu papel; e continuar, porque se os Rolling Stones ainda continuam é porque, de tudo o que já deram, ainda continuam a dar. Mas eu acho que o Simentera já tinha chegado a um ponto de criatividade máxima, como também acontece com vários artistas em toda a parte. Portanto esse tempo de duração depende da pulsação e dos ideais de cada um: sentir num determinado momento de parar ou de continuar depende muito dos objectivos que cada um tem.

Expr.d.i. - Mesmo existindo o risco de muitos artistas não se darem conta de que o momento de parar chegou?
ML - Dou-te toda a razão, porque os artistas, em geral, não gostam de aceitar que o seu tempo já terminou. É que o artista vive para fazer feliz às outras pessoas. Então, normalmente há um choque quando um artista está em alta, já fez sucesso, e surge uma nova geração. Custa-lhe aceitar que o público quer um novo som. Isto acontece muitas vezes, e recusam-se a se retirar ou então mesmo de acompanhar a nova onda. Há isso, e em Cabo Verde é frequente o choque de gerações e de talentos, exactamente porque há uma certa tacanhez em aceitar que os outros ocupem o espaço que anteriormente era nosso, ou supostamente nosso. Tudo é transitório, essa deve ser a postura de base. E é bom que surjam novos talentos, até para insuflar-nos novas energias. A nossa missão deve ser estimular esses novos talentos. Mas o engraçado é que só o talento é capaz de admirar o talento. Daí que quando já não se tem o talento, também despreza-se o talento, tenta-se excluir e esmagar o talento.

Expr.d.i. - Se o grande legado do Simentera foi a onda de música acústica que suscitou nas produções cabo-verdianas, não podemos esquecer que foi também o grupo que provavelmente foi mais fundo no nosso baú, ressuscitando temas já esquecidos como Tchapeu di Padja e outros. Que comentário?
ML - Eu lembro-me que o primeiríssimo tema que o Simentera fez arranjo foi Guentis d'Azagu do Zezé di nha Reinalda. Depois gravamos Tchapeu di Padja, Caminhu di Mar, Febri Funaná, Fomi 47, etc. Porque os objectivos que eu propus ao grupo era que nós temos uma responsabilidade no cancioneiro nacional; e se pegares em músicas belíssimas e fazeres novos arranjos, estás a entregar um testemunho à nova geração, para ela conhecer o que é se que fez no passado. Para não se cair na tentativa de descobrir a pólvora cada semana. Então um dos meus objectivos era pegar em temas tradicionais, mas de grande qualidade, e fazer com que a juventude se interesse por eles. Muita gente que se encontra comigo na rua diz-me ‘oi Tchapeu di Padja' pensando que a música é minha. A música não é minha, é de Jorge Pedro Barbosa, nós apenas fizemos uma, digamos assim, contemporaneização da música. É um objectivo que eu prossigo no meu disco Ao Vivo e aos Outros e tenho o plano de trazer mais música antiga, porque senão há o perigo de as músicas caírem no esquecimento e de há medida que nós avançamos, estarmos ao mesmo tempo dando um passo atrás porque vamos perdendo o acervo do cancioneiro tradicional.

Expr.d.i. - De facto em Guentis d'Azagu de Zezé di nha Reinalda, o grande sucesso do Simentera, quase tudo bateu certo...
M.L- Bateu tudo certo porque é uma música que eu adoro. Tenho uma grande paixão por essa música.
"Guentis d'Azagua afastou-me e aproximou-me do Zezé di nha Reinalda"
Devo dizer, pela primeira vez em público, que essa música afastou-me e aproximou do Zezé di nha Reinalda. Na realidade há erros de letra nesta música que eu assumo inteiramente, por eu ter feito o Simentera gravar a música sem pedir ao Zezé a letra original, fui pelo ouvido e enganei-me nalgumas palavras. Só que a minha admiração pelo Zezé ultrapassa esses pequenos conflitos. Eu tenho uma enorme admiração por ele, como pessoa e como artista, como acontece hoje, é um grande amigo meu, e sempre soube que as coisas iriam serenar. Mas o belo nisto tudo, é que foi por causa de uma música dele que eu adoro: o Guentis d'Azugua está, digamos, colado a mim. Canto-a sempre, as pessoas pedem-me que a cante. E há dias cantamos juntos essa música no Hotel-Praia e foi uma beleza: Eu e o Zezé abraçados a cantar Guentis d'Azagua. Digamos que foi um momento da consagração da amizade e do respeito que tenho por ele, e de como deve ser a convivência sã entre os artistas e as pessoas que se admiram. Então o Guentis d'Azagua foi a primeira música que o Simentera gravou e foi lá que nós definimos o conceito estético dos arranjos a virem Devo dizer que o meu trabalho Badyo tem duas fontes de inspiração como referência de outras obras: é o Volta pa Fonti, de Norberto Tavares e Guentis d'Azagua de Zezé di nha Reinalda e também de um outro disco que o Zezé e Zeca gravaram, intitulado ‘N ka por si.
Expr.d.i. - Estiveste à frente de uma orquestra que deu um concerto na noite de 5 de Julho na Praia celebrativo do trigésimo aniversário da independência nacional. O preço do espectáculo, avaliado em milhares de contos, valeu-te duras críticas de alguns colegas, cujos argumentos foram publicadas nas páginas deste jornal. Que comentário?ML - Eu soube. Mas não guardo ressentimentos. Entretanto com o Trigésimo Aniversário (Julho de 2005) aconteceu o seguinte: Apresentei o projecto cujo avaliação do montante já não me lembro. Em todo o caso, nesse projecto participaram 131 pessoas. A organização do evento nessa altura disse-me que só tinha 6 mil contos. Eu disse muito bem, faremos com esses 6 mil contos. Criei uma equipa que foi às casas comerciais, aos hotéis, aos restaurantes, revolveu mundos e fundos para conseguir meios adicionais. Porque acreditava que era a minha forma de contribuir. Isto é, investimos os nossos próprios meios nesse evento. Até amigos meus alojaram artistas e deram-lhes de comer em casa deles, na Praia, Cidade Velha, Tarrafal. Por partes: eu não geri o dinheiro, porque havia uma equipa a trabalhar nisso. A minha preocupação era que fôssemos capazes de realizar aquilo que eu propunha artisticamente com os meios que tínhamos. Pagaram a todo o mundo: há aqueles que receberam muito pouco, como os músicos da orquestra; alguns não receberam porque eram funcionários, os outros que nós achamos que podiam precisar, foram-lhes atribuído uma quantia, mas em combinação prévia com eles, porque não havia meios. Imagina o que é ter 131 pessoas e foi com os nossos meios que nós fizemos deslocar essas pessoas das outras ilhas e com o apoio das Câmaras municipais; foi com esse dinheiro que todo o mundo foi alojado nos hotéis cá na Praia e foi com esse dinheiro que todo o mundo se alimentou; foi com esse dinheiro que todo o mundo foi transportado internamente; foi com esse dinheiro que todo o mundo recebeu um argent de poche, alguns receberam algum cachet, etc. Não era só para a orquestra, mas para o concerto todo: tinha Vasco Martins. Codé di Dona, a minha banda, a Orquestra Nacional de Cordas, as Batucadeiras de Monteagarro, Tabanka de Tchada Grandi, Nácia Gomi, Raiz di Polon, Batucada de Mick Lima, e uma equipa de produtores e colaboradores. Ainda, o som, a iluminação, o palco, os técnicos internacionais. Vou-te dizer uma coisa: de toda a história da minha vida, podes pesquisar, não vais encontrar que alguma vez o Governo deu-me dinheiro algum, a não ser as bolsas de estudo. Nunca pedi sequer, para mim. Nunca fui patrocinado nem esponsorizado por nenhum Governo. Vou dizer-te o caso: quando o Simentera ia para Sevilha, em 1992, o Simentera não tinha instrumentos. E foi o Pepey Bettencourt que foi solicitar ao então Ministro das Finanças, Gualberto do Rosário, e este deu um apoio enorme ao Simentera. Patrocinou-nos num montante modesto, mas com esse montante nós adquirimos todos os instrumentos do Simentera que hoje ainda existem. Mais tarde, já na minha carreira a solo, eu tinha um concerto não me lembro já aonde e pedi ao ministério da Cultura um apoio. O ministério da Cultura patrocinou-me em 80 contos. Numa outra altura, no Memorial Amílcar Cabral (na Praia) fiz um concerto com o Raiz di Polon e muitos outros artistas. A Presidência da República patrocinou esse concerto com 80 contos. Foram para os músicos, a produção, os transportes, e outras coisas. Mas já pedi muito para projectos colectivos, para beneficiar outras pessoas, porque acredito em ideias.

Expr.d.i. - Porquê é que alguns dos seus colegas reagiram da forma como reagiram?
ML - Eu não sei, aliás, nem acho que foram meus colegas, mas antes meus detractores. De certeza não o fizeram com a intenção de me ajudar. Teve muito a ver com a política. Como tinha a ver com a política, o próprio jornal Expresso das ilhas deu grande cobertura a essa destruição da obra e da minha pessoa evidentemente. Há uma coisa que eu aceito: a opinião alheia, perfeitamente. Todas as opiniões são importantes, por isso é que nunca tive a tentação de retaliar. Agora, como a opinião das pessoas é importante, ela deve portanto ser equânime, justa, fundamentada, é preciso medir as palavras e evitar magoar as pessoas. Nesse caso foram opiniões baseadas em dados falsos, porque falaram em 11 mil contos, em 13 mil, e não tinham dados...Podiam criticar-me pela obra, que não atingiu todas as expectativas, porque na arte há dias bons e há dias maus, criticar o Governo pela política, mas tinham o dever de esclarecer as pessoas de um modo didáctico. E espero que façam de forma generosa isso com o disco "Badyo"

Expr.d.i. - O Expresso das ilhas limitou-se a transportar o que os teus críticos disseram...
ML - É evidente. Eu acho que o papel do jornal é esse, e aplaudo. Há uma vantagem: sou muito tolerante com a opinião alheia. Daí que aceitei com toda a tranquilidade a opinião dos outros. Quando era exagerado e entrava em questões pessoais, simplesmente para destruir a minha obra, o evento, eu não ligava porque pensava que o problema estava nas pessoas, pois tratava-se da cólera, do ódio. As pessoas têm infelicidades, têm insatisfação e descarregam quando têm uma oportunidade. Eu trabalho, disciplino o meu espírito para me manter sereno, porque essas coisas são passageiras. Acredito é na obra boa, e sempre me desculpei nestas circunstâncias, quando faço as coisas de boa-fé. Aí então fico absolutamente tranquilo. Mas é muito bom que me colocas essa questão, porque ficou em aberto, porque eu nunca quis responder, nem entrar em detalhes. Não acho que devemos digladiar-nos só porque nos discordamos.

Expr.d.i - Então pergunto: voltavas a estar à frente de um mega projecto como o concerto do 30º aniversário, apesar das duras críticas?
ML - Olha, é evidente que se eu fosse homem com vocação de desistência, já não estava cá. E vai-se ganhando lutas, pouco a pouco. Eu considero-me uma pessoa generosa, e as pessoas que têm caminhado comigo, mormente os meus amigos, sabem que eu nunca ganhei um centavo com esse projecto, nem com qualquer outro. Pelo contrário: muitas vezes, como no Fesquintal de Jazz fiquei sem dinheiro das poupanças que eu tinha. Houve um momento em que O Festival quase parou, tínhamos uma dívida de 2.500 contos. Foi um amigo meu que nos salvou, a quem devo até hoje. Mas também ainda acredito na Feira Mundial da Música (Praia, Novembro de 2008) porque creio em ideias que possam realmente trazer a este país a capacidade e a competitividade no âmbito mundial da música.
" Tirei lições do projecto Trigésimo Aniversário"
Eu estaria sempre disposto a liderar qualquer mega ou pequeno projecto que as entidades do meu país entendessem convidar-me. Repara: eu fiz o projecto musical para a Expo Sevilha 92, quando o ministro era Leão Lopes. Depois fiz todo o projecto musical para Lisboa 98, quando o ministro da Cultura era António Jorge Delgado. Portanto eu nunca politizei a cultura, e nem faço isso. O facto das pessoas terem as suas convicções é uma coisa boa, para poder haver alternância. Mas a cultura é partido de todos os cabo-verdianos. E é nesse partido que eu voto e é nele que eu confio, acredito e tenho fé. É por ele que eu vivo, porque foi esse partido que me criou, a cultura. Estou disposto a assumir responsabilidades, menos cargos políticos, mas projectos musicais perfeitamente, e pronto a receber críticas. Há uma diferença entre um homem bom e um homem mau. O homem bom é aquele que ouve as críticas e aproveita a crítica para se melhorar. O homem mau é aquele que não aceita críticas e quando é criticado é capaz de reagir ainda com mais violência. Eu sempre oiço, e da crítica tiro sempre algo positivo. E desse projecto do Trigésimo Aniversário também tirei as minhas lições. E se hoje sou melhor, devo esse mérito aos meus inimigos.



Expresso das Ilhas

Dany silva - "Caminho Longi"

DANY SILVA PREPARA “CAMINHO LONGI”, NOVO CD
Foi para Portugal, mais propriamente para Santarém, fazer o curso de engenheiro técnico agrário e é nesta escola que o músico, cantor e compositor cabo-verdiano, Dany Silva, em parceria com alguns colegas, fundou a banda musical "Charruas". Nesta banda, Dany começou como baterista e depois passou para baixista, tendo ele nunca mais separado de uma viola baixo. É com o sucesso "Branco Velho, Tinto e Jeropiga" que se inicia a sua projecção para o grande mundo musical. Depois de sete anos sem gravar, hoje, Dany Silva prepara um novo trabalho, que será lançado em Fevereiro do próximo ano
Expresso das Ilhas - Dany Silva, a sua carreira musical, em Portugal, começou da melhor forma: como baixista e um dos cantores de "Charruas", a banda que mais marcou a batida «ié-ié», no final da década 60, nesse país. Como foi a experiência e quanto tempo durou? Dany Silva: "Charruas" foi a minha cartidjona no mundo da música. Entretanto, como era um grupo de escola, cada integrante do grupo foi terminando o curso e saindo. E foi desta forma que o grupo acabou. Esta banda gravou apenas um disco onde constam duas composições minhas. Como na escola o baixista estava no último ano do seu curso, então ficamos sem baixista. Foi assim que passei para a viola baixo, e desde esta altura, este instrumento acompanha-me até hoje. Só quando comecei a gravar, por uma questão de mais facilidade, em espectáculos, comecei a tocar viola. A viola baixo só tocava nos estúdios, em situações pontuais.
Expresso das Ilhas - Algumas canções originais que cantaram em inglês, chegaram aos tops musicais em Portugal. Que títulos foram da tua autoria?Dany Silva - Começamos a gravar com um disco chamado "Moleques Charruas", com uma editora que havia nesta altura, tinha depois temas meus, um era a música e outra a letra. A maioria das nossas composições era feita em conjunto. Era uma banda que imitava os Beatles. Este disco teve muito sucesso logo na altura do seu lançamento.
Expresso das Ilhas - No meio deste trabalho, onde ficou a música de Cabo Verde na sua vida?Dany Silva - Nunca deixei a música de Cabo Vede. Estava sempre em contacto com a música da nossa terra. Numa altura, surgiu uma oportunidade de gravar o primeiro disco, que foi com uma etiqueta que o Bana tinha que era o "Monte Cara". Mas é um single com apenas duas músicas, uma de cada lado, um LP (disco vinil), contendo uma Balada e um Blues. As músicas começaram a ser apresentadas na televisão portuguesa, foi quando uma editorada muito importante em Portugal, a Valentim de Carvalho, me convidou para gravar. Permaneci com esta editora durante quinze anos. O primeiro tema que gravei com eles, me tinham exigido que fosse em português, foi então aqui que surgiu o sucesso "Branco, Tinto e Jeropiga". Tive uma sorte enorme com esta música, porque é difícil alcançar o sucesso logo à primeira.Depois gravei outro max single como "Crioula de São Bento", cantado em português, num ritmo mais africano. Depois de estes dois sucessos, a nível de vendas, até que tive conversas com os responsáveis da Valentim de Carvalho, demonstrando-lhes a minha vontade de fazer uma coladeira cantada em crioulo, também uma morna. Então ficou combinado que iria fazer um LP com 10 temas onde, pelo menos, tinha que conter três temas em português. Quem produziu este trabalho, "Lua vagabunda", foi o Rui Veloso, onde também gravei outros sucessos como "Lua nha testemunha", "Um badjo na Fazenda", "Fidjo magoado", "Nha mudjer", na altura Paulino Vieira deu-me um tema, o "Sol de Manhã", entre outros. Mesmo cantando em crioulo "Lua nha testemunha" foi um sucesso não só entre os cabo-verdianos mas também entre os não cabo-verdianos.
Expresso das Ilhas - Esperava esta repercussão?Dany Silva - Não, porque quando uma pessoa faz um disco, normalmente não pensa num bom sucesso, mas pensamos, pelo menos, que tudo vai correr bem.
Expresso das Ilhas - A sua segunda experiência numa banda portuguesa foi no "Quinteto Académico+2", que teve também muito sucesso. Como foi a sua experiência nessa banda?Dany Silva - Em 1968, para 69, quando acabei o curso, havia, em Portugal, um grupo chamado "Quinteto Académico+2" que era formado por universitários, mas que já estavam numa fase profissionalizante, os empresários que tinham, e hoje um deles é director do Casino Estoril, dr. Mário Assis, resolveram transformar essa banda com uma projecção internacional. Nessa altura, estava em Lisboa a esperar a minha listagem para o serviço militar, dr. Mário Assis foi para a Inglaterra trazer um vocalista para a banda, que era um americano que estava nesse país, trouxe um organista e um trompetista. O baixista que estava com eles, por causa de problemas pessoais, foi substituído por mim. Por isso, a minha ida para a tropa foi adiada. E é nesta banda, o "Quinteto Académico+2" é que comecei a ter contacto com Blues e Soul Music. Saímos em várias digressões para a Europa e mais tarde para Moçambique, Angola e, claro, fazíamos digressões em Portugal. Em finais de 1969, este grupo veio a acabar, tendo feito a sua actuação no fim do ano lectivo desta altura. Em 70, fui para a tropa e, durante os três anos que lá permaneci, tocava esporadicamente. Quando regressei, entrei para a música como profissional.
Expresso das Ilhas - O seu grande sucesso musical, em Portugal, foi seguramente o tema "Branco, Velho, Tinto e Jeropiga". Conta-nos a história desta música e o que significou para a sua carreira?Dany Silva - Este tema é um dos obrigatórios, quando faço alguma actuação em Portugal. Muitas vezes, costumo deixá-la para o fim do espectáculo para cantá-la, mas o público, no meio da actuação, começa a pedir que eu cante "Branco, Tinto e Jeropiga".Esta música foi escrita numa altura em que eu era músico de Boite, isso quando tinha regressado da tropa. Como tocava à noite, terminava a actuação sempre tarde, passavam, muitas vezes, das três horas da madrugada. Muitas vezes, para relaxar, depois das actuações, íamos para um bar que chamávamos de "A taberna do João", o tal João era empregado desse lugar. Ali comíamos e bebíamos vinho. Numa dessas noites, estávamos na brincadeira com um violão e tentar satirizar com aqueles momentos. Passado dois dias o Engenheiro de som, Zunga Pinheiro, apareceu-me com a letra desta canção relatando essa noite. Tentei dar a esta música um rítmo tipo reggae. Já, quando Valentim de Carvalho contactou-me para gravar com eles, já tinha a música toda composta. Tive muita sorte com esta música, que foi um sucesso e abriu-me uma janela no mercado musical em Portugal e, depois deste trabalho, vieram muitos outros. Na vida dos músicos, às vezes, só talento para ter sucesso não basta. É preciso termos um bocadinho de sorte. Eu tive esta sorte. É uma música marcante para mim. A primeira música que espalhou o meu nome e o meu curso de regente agrícola ficou na gaveta, até hoje.
Expresso das Ilhas - Considera-se um músico luso-cabo-verdiano ou simplesmente cabo-verdiano?Dany Silva - Musicalmente é difícil dizer, mas penso que se, ao invés de dizer luso-cabo-verdiano, dizer cabo-verdiano-luso era o mais provável, porque a parte cabo-verdiana está sempre em primeiro lugar. Mas, dado à minha vivência em Portugal, tenho influências de ritmos desse país: fado, música popular portuguesa. E esta mistura de influências de Cabo Verde e de Portugal estão dentro de mim. E é por isso que não digo que sou um típico músico cabo-verdiano, como é o Bana, a Cesária Évora e, como foi Ildo Lobo. Eu tenho outros estilos, outras influências de música que eu trouxe para perto da música cabo-verdiana. E penso que consegui fazer isso, não querendo ser juiz do meu trabalho, mas acredito que é notável no que tenho feito.
Expresso das Ilhas - Já participou em muitos festivais e concertos em Portugal e não só. Quais os mais memoráveis?Dany Silva - A minha participação na segunda ou terceira edição do Festival da Baia das Gatas é a mais memorável. Tinha vindo com a minha banda e ficamos hospedados numa escola, porque a organização do evento não tinha condições para nos colocar num hotel. Nessa altura, mês de Agosto, os alunos estavam de férias. Nessa escola, estavam também hospedados os outros músicos que vieram de Portugal, como Paulino Vieira, o grupo de Voz de Cabo Verde, que acompanhava Bana nas suas actuações. Também estavam nessa escola músicos de outras ilhas e o único convidado internacional, um músico cubano, que tinha vindo cantar em play back porque a banda não poderia vir com ele, por falta de recursos da organização do festival.Para além desse aspecto, o espectáculo, em si, foi uma maravilha, como o festival estava no princípio, aquilo era uma novidade, havia um ambiente extraordinário. Mesmo com fracos recursos e fraca condição de material, por exemplo, a aparelhagem era de baixa potência, essa edição do festival foi um sucesso.Não me esqueço de nenhum detalhe deste festival. Lembro como se fosse hoje.
Expresso das Ilhas - Qual dos seus vários trabalhos discográficos considera o mais conseguido?Dany Silva - É difícil dizer, porque cada um, a seu tempo, foi bem conseguido e todos muito importante. Hoje, se os for ouvir para fazer esta avaliação, depois de passado tanto tempo, tantas coisas já mudaram, a minha concepção em relação à música já mudou, não seria justo considerar, por exemplo, o primeiro trabalho menos conseguido ou o terceiro trabalho mais conseguido.
Expresso das Ilhas - Tem contrato com alguma editora portuguesa?Dany Silva -Neste momento, não tenho contrato com nenhuma gravadora.
Novo disco depois de sete anos sem gravar
Expresso das Ilhas - Está a preparar um novo disco que vai ser lançado em Fevereiro do próximo ano. O que nos pode dizer deste trabalho?Dany Silva - O nome deste álbum é "Caminho Longe", que fiz em homenagem ao meu irmão que faleceu em 2001, mas também em homenagem a todas as pessoas que vamos perdendo pelo caminho, na vida. Há três anos que tenho esta maqueta gravada. Mas tentei negociar com algumas editoras em Portugal, mas a situação das editoras está muito difícil por causa da pirataria. As editoras estão a perder dinheiro, não conseguem investir.Este novo trabalho tornou possível graças a um convite que recebi de um produtor americano, o Berry, para gravar nos Estados Unidos da América. Uma parte deste disco foi feita nos EUA, onde participaram alguns músicos cabo-verdianos residentes nesse país, Djim Djob, Ramiro Mendes, Kalú Monteiro, entre outros. A outra parte deste trabalho foi feita em Lisboa, no estúdio do Rui Veloso, adicionar a este trabalho instrumentos típicos de Cabo Verde, como cavaquinho, violão, etc.No CD, constam 12 faixas musicais, onde apenas duas músicas não são inéditas. Gravei uma nova versão da música "Mamãe África", onde faço um dueto com um cantor americano e ele canta uma parte em inglês, a outra música é "Foi por ela", do músico português Faustino. Tornei esta música popular portuguesa numa morna. Mais informações deste disco, terão oportunidade de conferir no próximo ano.
Expresso das Ilhas - Qual a sua opinião sobre as novas tendências da música cabo-verdiana?Dany Silva - O trabalho que alguns músicos contemporâneos, como o Tcheka, Vadú, é espectacular. Eles estão a fazer um trabalho que, para mim, é inovação. Eles introduziram aos ritmos do interior de Santiago novos instrumentos, como a viola. Esses ritmos, conheci-os apenas com voz e percussão.
Expresso das Ilhas - O Governo não podia fazer mais pela música...?Dany Silva - Falando da realidade que conheço, em Portugal, a pirataria está terrível. Sei que há uma tentativa em acabar com este mercado negro, mas tem-se feito apreensões de reproduções de álbuns, mas no outro dia parecem novos no mercado. Acredito que quanto mais incrementado for a luta contra isso, melhor será o resultado. Se o infractor começar a ser punido com penas mais pesadas, talvez venha a dissuadir um bocado.
Expresso das Ilhas - Pensas ter alcançado já tudo na música?Dany Silva - Não, porque, a todo dia, estou aprendendo coisas novas e assim vou inovando o que sei. A minha vida é música, se disser que já alcancei tudo o que queria nesta área, então quer dizer que teria de parar por aqui.
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